Xingamentos Solidários


Cabelo preso, calça jeans, moletom cinza, assim eu a via.
Nossos horários se encontravam em quase todas as manhãs durante a semana, às vezes ela me cumprimentava.
Numa manhã fria, na esquina de casa, quase fui atropelada por um carro grande que subiu na calçada:
- Irresponsável - eu gritei trêmula.
As palavras da vizinha que vinha logo atrás foram:
- Bandido filho da puta!
Neste dia, andamos lado a lado por dois quarteirões, xingando solidariamente o grandessíssimo filho da puta que quase me matou, daí simpatizei-me com a menina indignada, devia ter uns vinte, vinte e poucos anos no máximo. Demos “bom dia” ao Paulo, nosso vizinho morador de rua e foi a única vez que vi outro vizinho cumprimentar o Paulo.
Pois bem, depois do susto seguido de redentores xingamentos, os cumprimentos passaram a ser constantes, às vezes até trocávamos algumas poucas palavras sobre a falta de iluminação da rua ou sobre algum barulho estranho durante a noite, ela morava no prédio em frente ao meu.
Ainda que ela usasse uma grande armação com lentes escuras em alguns dias nublados, não raro, me parecia que ela tinha chorado.
Marcantes olhos miúdos e melancólicos mesmo nos dias ensolarados sem óculos.
Quando o tempo estava mais quente, usava camiseta: branca, às vezes preta, muitas vezes cinza, como o moletom dos dias mornos e gelados.
Eu nunca disse, mas talvez, por causa do formato oval do rosto e dos cabelos pretos ondulados eu a achava parecida com Daniela, minha amiga, embora os olhos de Dani transmitam uma alegria que nunca vi nos olhos acastanhados da vizinha.
Certa madrugada, passei por ela quando voltava de uma festa, mas ela pareceu não me enxergar, fumava sob a garoa. Não mais a encontrei mais por um bom tempo...
Até poucas horas depois do trágico resultado do 2º turno da eleição presidencial de 2018... pela 1ª vez, a vi acompanhada de algumas outras pessoas da mesma idade e de mãos dadas com uma menina de cabelos vermelhos, cor que refletia nos olhos da vizinha, nos encontramos no elevador, estava morando no mesmo condomínio da minha amiga Luciana, continuava vizinha, só um quarteirão e meio mais distante.
Naquele fatídico dia, estávamos todos tristes, chorosos e emotivos, ela me deu um abraço e disse:
- Esse filho da puta vai acabar com a gente...
Eu mal respondi sem convicção:
- Tomara que não.
Depois disso, nossos encontros foram muito raros, creio que dois: uma vez na padaria, outra no supermercado, nos cumprimentamos de longe, ela me pareceu mais magra, os olhos continuavam melancólicos e as roupas neutras.
Alguns meses depois, numa manhã gelada de domingo, acordei sobressaltada com alguns barulhos estranhos na vizinhança, um alvoroço... meu filho dormia perto, o gato roncava com a pata sobre os olhos, estava frio demais, voltei a dormir.
Somente na segunda-feira, o porteiro me contou que alguém havia se jogado da janela na rua de trás, Luciana me confirmou a história horrorizada, um suicídio no prédio que ela mora...  a menina de cinza, minha vizinha, sofria de depressão, se jogou do décimo oitavo andar, só então eu soube: chamava-se Gisele.

12-13 de agosto de 2019
(Laboratório de Redação Literária com Gílson Rampazzo
Tema 68: A solitária moça de cinza da minha rua)

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