Luzes Coloridas


(Tema 45: Naquela festa, você mandava bem na dança, conseguindo chamar a atenção da pessoa que lhe interessava. não podia esperar a catastrófica interferência da Berenice...)
  
Quinta-feira, o melhor dia da semana, dia de poesia. Noite de poemas com Gílson e Felipe, depois quintaduzamigos que se traduzia em encontros com pessoas queridas de longa data e com meu amor platônico de sob as luzes coloridas e circulares do Boteco Prato do Dia.
Nem o fantasma da sonolenta manhã de sexta-feira conseguia diminuir o divertimento e o lirismo.
O Prato do Dia, nosso lugar preferido, além de ser ótimo, tocar só boa música brasileira, fica ao lado de casa, não à toa, apelidado de quintal... Fora a companhia impagável dos melhores amigos, meu plus lírico atendia pelo apelido de Lírio... Ah... Lírio: DJ residente, com set list maravilhoso, host, sócio, faz-tudo do coletivo Prato do Dia.
Alto, magro, barbudo, olhos claros de mergulho, jovem de alma velha... me apaixonei perdidamente, talvez por causa do momento frágil pós separação, talvez por ele ser tão fofo, argumento amplamente refutado por meus amigos, principalmente por Iago, que tinha acessos de riso sobre o adjetivo:
- Cláudia, ele é tudo, menos fofo...
Para além da visão de minhas lentes apaixonadas, achavam Lírio legal, mas feio, um tanto esquisito... Que heresia! Ele era o muso inspirador dos meus poemas, os olhos claros de mergulho... Embora, na real, eu não mergulhasse mesmo, mal chegava perto, só observava, só babava.
Luciana, minha amiga, incentivava, dizia que dava jogo... Imagine! eu só suspirava, me inspirava. Claro que ele devia perceber meu interesse ou, pelo menos, devia me considerar um pouco mais esquisita que os outros frequentadores, às vezes, até puxava um papo, mas eu só ficava lá... quase sem fala, hipnotizada, com meus olhos bobos mergulhados nos intangíveis olhos claros de mergulho.
Enfim, o tempo passou, a paixão platônica continuou e chegou o final do ano, com festa imperdível do Prato do Dia, numa vila arborizada na Rua Augusta.
Claro que eu fui de blusa nova e tudo, a vilinha era muito bonitinha, ainda mais com a decoração especial de luzes coloridas. Logo vi Lírio, que só discotecaria mais tarde, e para minha alegria, nos cumprimentou e não saiu mais de perto, estava falante, de camisa florida, me fazendo perguntas com aquele olhar profundo, me desnudando a alma, eu sentia até seu hálito.
Na verdade, ele conversava com todo meu/nosso grupo de amigos, contou sobre a vida, onde estudou, o que fez, que casou, separou, e eu lá: ouvindo inebriada, me perdendo cada vez mais em cada detalhe dele.
Quando percebi, já dançávamos todos felizes, um tanto alcoolizados, é certo, mas muito alegres, eu estava até achando que estava mandando bem ao lado meu amado.
E eis que chegou Berenice... Minha amiga-irmã maravilhosa, um tanto “louca”, digo: MUITO expansiva... Somos amigas há mais de 20 anos desde quando a timidez me dominava. Quanta vergonha Berenice já me fez passar..... daí porque gelei quando Berê chegou, ela sabia da minha paixão platônica, porém, não conhecia o protagonista, aliás, eu fazia que questão de que ela não o conhecesse, mas ali não teria como impedir...
Berenice chegou com uma taça de vinho na mão, animadíssima, me abraçando e me tirando do chão, cumprimentou todos ... Quando chegou a vez do Lírio, ele se apresentou e eu já estava vermelha, azul, roxa... antevendo a desgraça... Até fechei os olhos...
- Então esse é o famoso Lírio?! De boba você não tem nada, né, Cláudia?
Eu pensando em como sumir, enquanto Berenice continuava, agora para Lírio:
- Adoro as poesias que minha amiga faz pra você, que bom que vocês se acertaram, você é um ótimo muso, já falei para a Cláudia, essa história de platonismo é muito bonitinha, mas o bom é concretizar, não é mesmo?
Eita... parte da turma, que percebeu o que estava acontecendo ria a outra parte continuava dançando, eu devia estar amarela da cor da minha blusa, nem conseguia olhar para o muso, e Berenice falando, falando...
Puta que pariu, eu não sabia se ia ao banheiro, se dançava, se pegava uma bebida, ria, chorava ou estrangulava a Berenice, antes de tomar uma decisão, senti uma mão apertando suavemente a minha e me puxando...
Meu Deus... Eu nem estava acreditando... Lírio estava me levando, o muso estava segurando minha mão, andamos uns 20 metros e chegamos ao lado de uma jabuticabeira, ele olhou bem dentro dos meus olhos abismados, com aqueles olhos tão poéticos e disse:
- Você gosta de jabuticaba?
Eu respondi:
- Muito...
E antes que eu contasse da minha infância na jabuticabeira, ele se aproximou, beijou cada face do meu rosto, antes de chegar deliciosamente aos lábios... o gosto era doce como a jabuticaba que eu comia sob a árvore do quintal do vô Dito, eu finalmente mergulhava no fundo do mar claro, no dia mais propício, com todo o colorido reluzente me circundando e me envolvendo deliciosamente.
Não consegui, nem precisei dizer nada, logo em seguida, começaram a anunciar a discotecagem de Lírio, ele segurou minha mão e disse:
-  Vem comigo.
Fui, mas antes que chegássemos à pick up de som, Berenice apareceu novamente:
- Amiga, estou passando mal.
Ela estava quase desmaiando, a levei ao banheiro, depois tive que acionar Lúcio, o único amigo sóbrio de carro. Terminamos a noite no Hospital São Camilo, Berenice precisou tomar glicose e eu perdi a discotecagem de Lírio.
Aliás, eu não vi mais meu muso, o Prato do Dia fechou para férias de final de ano, quando reabriu, eu estava viajando, quando a quintaduzamigos foi restaurada, Lírio não trabalhava mais no nosso quintal, só o revi, rapidamente, em fevereiro, num bloco de carnaval: ele estava vestido de Elza (Frozen), eu de mulher maravilha, ambos acompanhados de outros amores, só trocamos olhares de longe, depois: nunca mais. Soube que ele se mudou para Recife.
Não, não matei a Berenice, ela está bem, continuamos amigas, ainda vou ao Prato do Dia, ainda danço boa música brasileira sob luzes circulares coloridas, mas os olhos claros de mergulho agora só na lembrança e nos poemas antigos.

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