A Primeira Viagem de Avião a Gente nunca Esquece
O limite do cartão Unibanco universitário não foi
suficiente para o pagamento das passagens, foram necessários: meu cartão, o
cartão do Iago, mais dois saques no banco 24 horas da Praça da República, próximo
à agência de viagens, que representava a Lloyd Aéreo Boliviano.
Tudo certo: férias marcadas, as primeiras desde
que ingressei naquele serviço público infernal, aliás, tudo era pela primeira
vez: o namorado, férias com meu próprio dinheiro, planejamento, saída do
Brasil, viagem de avião.
Por que Machu Picchu? Por causa do Kika, nosso
professor preferido, que encenou a saga de sua viagem ao Peru durante aula de
história no 2º Colegial... Quando comecei a namorar meu amigo de colégio
reencontrado na faculdade, tínhamos um montão de coisas em comum: idade, gosto
musical, amigos, origens, alinhamento político, cerveja, maconha e a vontade de
conhecer a terra dos Incas, de tal modo que não foi difícil escolhermos o
destino das nossas primeiras férias juntos.
Finalmente chegou o dia 14 de junho de 1997,
véspera de nossa aventura, malas prontas, na verdade, mochilas de acampamento
abarrotadas com tudo que julgávamos necessário para a trilha e para as paradas
em La Paz e nas Ilhas do Lago Titicaca.
Nem nossa propensão ao sono, nem nossa
incapacidade organizacional nos impediria de pegar aquele voo domingo de manhã.
Acordamos ao som estridente do rádio-relógio,
pouco depois ouvimos a abertura da porta da sala do Iago: Eba! Richard, nossa
carona chegou antes do horário...
Só que nossa animação murchou diante dos olhos
vermelhos do nosso amigo e das palavras seguintes:
- Desculpem, mas não poderei levá-los... meu pai
morreu...
O que? Foi nossa resposta sincronizada.
Márcio... Márcio morreu, infarto fulminante aos 44
anos... Claro que sentiríamos de qualquer forma, porque Richard é irmão de
alma, mas Márcio não era só o pai do nosso melhor amigo, não só pai, pai que
escolheu ser pai daquele filho, Márcio era o cara festeiro, que bebia cerveja
com a gente, que organizava a festa junina mais animada, que nos defendia
quando aprontávamos, que buscava a molecada na balada de roupão, que preparava
o melhor churrasco de todos, o Márcio estava com a gente anteontem, de mãos
dadas com a Elenice descendo a Dr. Vila Nova... Porra, como assim o Márcio
morreu?
Que merda... Naqueles segundos, uma parte do nosso
jovem mundinho ruiu...
Antes mesmo que a ficha acabasse de cair, Léo
chegou e se juntou ao nosso triste abraço, até ele, que não era dado a
sentimentalismos, trazia olhos embaçados, mas logo se recompôs e anunciou:
- Eu levo vocês ao aeroporto. Está tudo pronto?
Sim, Richard, o amigo mais agilizado de todos,
mesmo assumindo todos os preparativos do funeral, tivera cabeça para arrumar
outra carona e garantir que não perdêssemos nossa viagem... Como? Até hoje não
sei...
- Nada vai impedir vocês de conhecer Machu Picchu,
vão logo, vou ficar bem - foram as palavras de Richard interrompendo nossa
despedida molhada.
A custo, seguimos anestesiados o caminho para o
aeroporto de Cumbica, que pareceu ainda mais longo e muito mais dolorido do que
da primeira vez, um mês antes, quando tomamos a vacina contra febre amarela. Só
me lembro do vento frio e das vozes difusas até o estacionamento do aeroporto,
seguimos.
Imagine duas tartarugas ninjas, assim parecíamos,
assim Léo nos abraçou e fotografou rumo ao check in...
- Todo cierto - disse a atendente de cabelo
impecável e uma quantidade considerável de maquiagem para o horário matutino...
Não tinha mais volta, embarcaríamos.
Portão de embarque, raio X, passaporte, bilhete,
todos esses detalhes passam pela minha cabeça meio lentos e embaralhados...
O fato é que já estávamos dentro do avião, sentei
com certa dificuldade, minhas pernas eram muito grandes para aquele assento, os
bolivianos devem ser muito menores... Acomodada, lembro-me da primeira franca
risada que dei desde a notícia funesta:
Se eu com 1,66m tive dificuldade para me acomodar,
a imagem de Iago, 1,90m, se encaixando no assento ao meu lado foi hilária,
parecia que ele tentava ocupar uma cadeira da casa dos Sete Anões.
Eita quanta gente cabe num avião, divaguei e pensando
no trem da morte que o Kika descreveu, perguntei ao meu companheiro se ele
achava que seria possível falar algo a sério em espanhol.
- Não, definitivamente, não. - ele respondeu e
relaxamos, pelo menos até a decolagem...
Ai, ai sensação esquisita, barulho de hélices,
turbinas, coração na garganta, nossas mãos bem grudadas, meus os olhos
insistiram em fechar por alguns segundos eternos... Pronto, o frio na barriga
passou, estávamos estáveis acima das nuvens, sensação boa.
Ainda encantada com a visão de algodão da
janelinha, ouvi a aeromoça me oferecer bebida. Como no? Cerveza para Iago, vino
para mim.
Bendito álcool, aérea viagem, todos felizes nas
nuvens, a bela visão dos Andes, parecia um filme... e aí lembramos do filme sobre
o acidente aéreo, cujos sobreviventes tiveram que aderir ao canibalismo, o
cenário era o mesmo.... nem isso nos amedrontou muito.
Só que perto do nosso destino, rolou a famosa
turbulência... não foi muito agradável, o vinho em minha barriga movia-se muito
revolto, respirei fundo, fechei os olhos e ouvi Iago dizer:
- Espero que não encontremos Márcio hoje, que seja
pelo menos na volta.
Eu ri e logo a turbulência passou.
Pouco depois, o pessoal da língua que não dá para
dizer nada a sério, falou algo no alto falante, as aeromoças maquiadíssimas
checaram cintos, assentos. Novamente, entrelaçamos nossas mãos com força, mas o
frio na barriga foi menos intenso... os olhos permaneceram abertos enquanto o
avião da Lloyd Aéreo Boliviano pousou tranquilamente: Chegamos a La Paz.
Não encontramos o Márcio nem na ida nem na volta.
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