Acetona


Eu devia ter uns oito anos, estava na casa do meu primo Rogerinho, na verdade, estava com a esposa dele, a prima Vera, éramos vizinhos, morávamos no mesmo quarteirão.
Aliás, a prima Vera (eu ainda adoro falar este nome) era muito legal, eles tinham uma filha mais nova do que eu, a Rogerinha, que gostava muito de mim, eu gostava de visitá-los.
Sempre achei engraçado, apesar de nada criativo, tantas pessoas da mesma família com o mesmo nome: Rogério, meu tio, Rogerinho, meu primo, Rogerinha, minha priminha e depois ainda viria outro priminho, o Rogerico.
Enfim, eu estava lá, com a prima Vera e a Rogerinha, iríamos à FECCIB – Feira Citrícola, Comercial e Industrial de Bebedouro, a popular Festa da Laranja, eu estava animadíssima, mas meu esmalte cor-de-rosa estava descascando, então, atendendo ao meu pedido, prima Vera trouxe acetona e algodão para resolver o problema, só que, desde aquela época, a “desastrice” já me acompanhava, acabei derrubando acetona no sofá novo dos primos...
Prima Vera minimizou no momento, mas quando passamos pela minha casa, ela contou a minha mãe, que imediatamente me proibiu de ir à FECCIB... fiquei absolutamente arrasada, não esperava pela descabida punição... Que injustiça! Mas minha mãe foi irredutível até mesmo aos apelos da prima Vera.
Aos prantos, fui para o meu quarto inteiramente infeliz, soluçava sem parar, inconformada... minha mãe sempre tinha sido severa, mas eu nunca tinha me sentido tão abalada, injustiçada e infeliz, eu não iria à FECCIB por causa de um acidente bobo, teria sido melhor ficar com o esmalte rosa desbotado. Por que eu era tão desastrada? Por que tudo dava errado pra mim? Não bastava minha mãe ter achado minhas palavras no papel rosado, confessando meu amor pelo Gustavo da minha classe? Além de descobrir meu segredo, mamãe riu, achou graça, zombou de mim e da minha criancice, disse que eu não tinha idade para aquilo...
E agora eu estava no quarto, arrasada, enquanto todo mundo se divertia na Festa da Laranja... me bateu uma tristeza tão grande, uma vontade de não existir, me senti totalmente desnecessária...
D E S N E C E S S Á R I A era a palavra que soava e ressoava silenciosamente aos meus ouvidos.
Com a desculpa de pegar um copo de água, fui até a cozinha, abri a 1º gaveta do armário de fórmica vermelho, discretamente peguei a faca de serra pontuda com cabo plástico cor de creme, escondi no casaco e voltei para o quarto decidida a me matar.
Parece bem bobo alguém se matar por não poder ir à Festa da Laranja, mas naquele instante, meu mundo, minha importância evaporaram sem deixar odor ou qualquer vestígio. Era como eu tivesse desistido de subir uma escada sem degraus.
A nitidez da lembrança daquela determinação é tão real, que ainda consigo sentir no meio da névoa.... foi a primeira e única vez que perdi toda a esperança.
Felizmente, minha mãe apareceu antes que eu concretizasse a tentativa e “curou” meu ímpeto suicida com a psicologia vigente na década de 80 (embora eu não tenha apanhado naquele dia), ela só ficou brava, achou que eu estava querendo chamar a atenção e levou a faca embora, enquanto eu permaneci chorando, sem ir à FECCIB.
E chorando adormeci abraçada a minha boneca dorminhoca.
No dia seguinte, acordei com uma menininha de cabelos encaracolados me chamando:
- Pima!
Era Rogerinha me contando a novidade: ela teria um irmãozinho. Logo me levantei e corri para a cozinha, prima Vera conversava com minha mãe, abracei a barriga da prima e perguntei qual seria o nome do bebê.
- Se for menino: Rogério, se for menina: Vera – me respondeu prima Vera.

Eu ri e fui brincar, enquanto minha mamãe dizia que eu tinha que tomar café da manhã... a vida voltava a ter sentido.



(Laboratório de Redação Literária com Gílson Rampazzo
Tema 37.g.: A primeira vez que você perdeu a esperança)

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